domingo, 7 de fevereiro de 2010

O alemão negro

Roberto Menezes



Jornal Nacional, 28 de abril, 2009. Uma notícia curta de Brasília : um homem de cabelos grisalhos, porte altivo, economista, que guardava em casa armas de todos os tipos. E a narração do locutor dizia que José Cândido do Amaral Filho confessou o assassinato a tiros de dois mendigos em Brasília, no dia 19 de janeiro , na mesma praça onde há 12 anos um índio pataxó foi queimado por cinco universitários. O criminoso disse que se sentia incomodado pela presença dos dois mendigos perto do seu prédio. Foi lá e atirou na cabeça dos dois. Notícia curta e grossa, sem nenhum comentário. O JN continua, mas com uma notícia otimista sobre a economia.


20 de novembro de 1995, tempos de FHC. Muito calor , céu nublado e desde nove horas da manhã, festa em Brasília. E era segunda-feira. Eu estava lá , com um só câmera e a esperteza da jornalista Edna Cristina, documentando a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, Pela Cidadania e a Vida. Uma homenagem aos 300 anos da morte de Zumbi, o líder da resistência à escravidão. Mais de 30 mil pessoas caminhando do Largo do Circular até a Esplanada do Planalto. Cabelos afros, maracatus, capoeiras, gente de candomblé, e toda a força e beleza da raça negra. Era uma coisa que só se via nos grandes comícios populares ou no carnaval da Bahia e do Recife. Carros de som, fantasias, alegria geral.As condições precárias de filmagem impediam que o câmera sempre estivesse junto de mim. Mandei o câmera Renato Diehl fazer closes e gerais da Marcha e de meia em meia hora ele colaria comigo pra filmar uns planos especiais.No dia anterior, já tínhamos entrevistado lideranças negras, filmado num Salão de Beleza afro e feito algumas cenas no Teatro Nacional com um ator negro.No meio da loucura, que é filmar uma passeata gigante com uma só câmera por falta de grana,topo com Edésio Alemão. Branco sarará, roupas puídas, sapatos abertos. Mendigo típico de Brasília , era um dos mais animados da festa negra. Vez por outra recebia um empurrão dos seguranças negros para não se misturar com a massa organizada. Lá estava o Lula, que ainda não era presidente, de braços dados com Vicentinho e Edson Cardoso, o organizador do movimento. Num dos empurrões, Edésio Alemão veio bater junto de mim e me disse o nome.Cachaça já na cabeça, mas uma surpreendente lucidez nos pensamentos. Perguntei de onde ele era, disse que de Sergipe. Viu o pai sair "pra ir colher borracha na Amazônia", o paraíso prometido pelo Presidente Getúlio Vargas. Borracha para os pneus dos aviões norte-americanos. Foi a última vez que Edésio Alemão viu o pai. Ele e a mãe ficavam esperando, e nada. A notícia que chegou é que ele pegou hepatite e febre amarela. Morreu no meio da mata. Seca em Sergipe, falta de terra pra plantar, a mãe caminhando com ele,os dois sozinhos, tanto sertão pela frente. Ela morreu quando ele tinha 11 anos. Edésio Alemão Ficou só no mundo. Gritei pra ele interrompendo a dolorosa narrativa: "Cessa tudo que a antiga musa canta, pois um poder mais alto se alevanta!" Ele me olhou espantado e eu apontei para a Camila Pitanga que ia falar do alto do carro. O nosso câmera encostou e fizemos um belo enquadramento da Camila, linda como sempre, gritando para a multidão:" eu acredito que todos vocês aqui estão sentindo o que eu sinto : o orgulho de ser ....negra! eu tenho orgulho disso! Sou uma negra!" A multidão enlouqueceu. Ritmos do Norte se misturavam com o axé baiano e o maracatu pernambucano. Os gritos se tornaram mais forte: "Hoje é dia de negro/ queremos escolas,queremos emprego", "Palmares,Zumbi/ Assim eu resisti!"O nosso câmera saiu correndo para filmar um bando de crianças dançando.Puxei Edésio Alemão pra um canto . O nome dele era por causa dos olhos azuis e do cabelo sarará, alourado. Edésio foi adotado por um travesti, de quem mais tarde se tornaria amante. Depois não quis mais e saiu procurando o que fazer no Brasil. Não encontrou. Veio parar em Brasília, já envelhecido. Não sabia dizer a idade. Talvez uns 68 a 70 anos, calculei. Perguntei porque ele estava ali,insistindo em participar. A resposta anotei e guardo comigo. Como lembrança do filme que ia fazer com, ele, e nunca fiz .-"Isso aqui é o Brasil mudando. O senhor não sabe o que eu,meu pai e minha mãe a gente passou na vida. A gente sabe o que é ser brasileiro. Por isso fico contente de ver gente negra e pobre como eu, um branco enganado pelo Brasil, protestando com a alegria de quem sabe que vai vencer."Pensei no cangaceiro Corisco de Glauber Rocha : " Mais forte são os poderes do povo!" Pensei no pensamento do velho Graça, o grande Graciliano Ramos, que diz em "Vivente das Alagoas" : "talvez nos sobre ainda, por baixo do verniz da educação, aquela energia de Lampião. Apesar da fome e da verminose".Minha proposta para Edésio Alemão : logo depois de montar o filme da Marcha Negra, fazer um filme com ele. Perguntei onde ele "se escondia". Respondeu:"não me escondo, me mostro. Sou uma ferida que não pode se esconder. Durmo na rua e Brasília tem que me ver, querendo ou não".Anotei.A festa negra só terminou quase dez da noite na Esplanada. Eu, Edna e Renato, a equipe brancaleone , estávamos exaustos. Uma lua cheia bonita iluminou Brasília. E de repente formou um halo na cabeça de uma figura que apareceu de repente. Ele mesmo, o Edésio Alemão. Cambaleando de bêbado.cantarolava engrolado a música de Gilberto Gil: :"branco se você soubesse /o valor que negro tem/ tu tomava banho de piche/ ficava negro também ". Virei pro Renato : filma!filma!Renato me disse : não tem mais fita e nem temos luz.E Edésio continuou a sua louvação ao Brasil em que ele finalmente acreditava : "somos crioulos doidos/somos bem legal/temos cabelo duro/somos bléque-pau" e agitava os dedos como se mandando uma mensagem de surra.Passei cinco dias montando o filme, mais um sonorizando e mais um esperando para mostrar ao cliente, o Movimento Negro Unificado. Uma semana depois da Marcha Negra e lá estou eu procurando Edésio Alemão. Rodoviária, Conjunto Nacional, Praça dos Três Poderes. Perguntei : ninguém lembrava, ninguém sabia. Voltei à noite . Em que quadra ele teria ido dormir ? Passei em frente ao busto de Zumbi. O herói de Palmares nada me disse. Mas o vigia do prédio em frente,sim. Me chamou e perguntou se eu estava procurando o Alemão. Ele tinha me visto conversando com ele durante a Marcha e estava perto da equipe quando à noite mandei Renato filmar. O mulato Luciano ,que trabalhava à noite, curtiu a festa popular o dia inteiro. E viu tudo na Marcha Negra.Viu também a morte brutal de Edésio Alemão. Eu quis saber de detalhes. Ele disse que se escondeu de medo e viu toda a covardia. Dois brancos, "filhinhos de papai", segundo ele, chegaram num carrão. Um deles ficou olhando o movimento da rua vazia, às duas da madrugada. Edésio Alemão dormia aos pés do busto de Zumbi.O outro branquinho veio e deu um tiro na cabeça do mendigo, que estribuchou. Saiu correndo e o que estava de vigia foi também pra perto de Edésio e deu outro tiro na cabeça, e outro nas costas. Correram para o carro,onde um motorista esperava. Arrancaram em alta velocidade.O vigia disse que passou muito tempo tremendo, até criar coragem de ir para o orelhão e avisar pra polícia, sem se identificar. Meia hora depois, chegaram os policiais e recolheram o corpo. Eu disse que não tinha visto em jornal nenhum, embora no trabalho pesado de edição eu mal passava a vista nos jornais. Luciano,o vigia, disse que nem na rádio deu. A polícia se foi com o corpo. Ficou por isso mesmo : é coisa comum em Brasília, disse o vigia. "Foi num foi morre um pobre desses na rua. Não faz falta , né? É menos um na miséria".Palavras literais de Antonio das Mortes no filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Menos um pra viver nessa miséria.Olhei a lua minguando sobre a cidade indiferente. Edésio Alemão escapou da morte por subnutrição e das outras doenças tropicais. Veio morrer assassinado aos pés de Zumbi. Não viu o Brasil mudar.




Postado por: ROBERTO MENEZES.

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