sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ainda o Haiti

Haiti, que ajuda?
OMAR RIBEIRO THOMAZ
OTÁVIO CALEGARI JORGE
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM PORTO PRÍNCIPE

O TERREMOTO no Haiti, que afetou de forma particularmente arrasadora sua
capital, foi há cerca de uma semana. O pouco de um Estado já frágil foi
destruído, a missão das Nações Unidas foi incapaz de ir além de resgatar
seus próprios mortos e feridos, a ajuda internacional tarda, e o que vemos
são haitianos ajudando haitianos.
Entre quarta-feira e sábado, caminhar pelas ruas do centro de Porto
Príncipe e de Pétionville era observar o civismo dos haitianos que, muitas
vezes, e como nós, sem entender claramente o que havia acontecido,
procuravam cuidar dos feridos, resgatar aqueles que ainda estavam vivos
sob os escombros, e dispor de seus mortos. O que vimos foi, de um lado,
solidariedade, de outro a ausência quase que total e absoluta das forças
da ONU e da ajuda internacional.
Por quê? Afinal, a Minustah não estava no Haiti há cerca de seis anos e
não dizia estar agindo no sentido de estabilizar o país e reconstruir o
Estado haitiano? Quando nos perguntávamos do porquê da demora de
disponibilizar comida e remédios já no aeroporto de Porto Príncipe para as
centenas de milhares de pessoas que se aglomeravam nos campos de
refugiados improvisados por todos os lados, a resposta era que não
existiam canais locais capazes de serem mobilizados para a tarefa.
Homens e mulheres que tinham vindo para ajudar, e as coisas que traziam,
se aglomeravam num aeroporto controlado por forças militares americanas,
como se de uma operação de guerra se tratasse.
Após seis anos no Haiti, aqueles que diziam que estavam ali para
reconstruir o país, não tinham entendido nada, ou muito pouca coisa.
Quando fomos às praças e campos de futebol transformados em campos de
refugiados, eram as "dame sara", mulheres que controlam as redes
comerciais existentes no país, que garantiam o acesso dos haitianos a
produtos; eram aquelas que cozinham na rua, "chein jambe", que ofereciam
galinha, espaguete, arroz, feijão e verduras aos haitianos e haitianas
aglomerados; eram caminhões pertencentes a empresários locais que
distribuíam água potável. Haitianos ajudando haitianos.
Por que não aproveitar esta energia e estas redes existentes para fazer
chegar a ajuda? Por desconhecimento, talvez, ou talvez por duvidar de sua
eficácia, ou da possibilidade de uma vítima ser mais do que uma vítima
passiva à espera de ajuda.
O desconhecimento, no entanto, é duvidável. Em nossa visita ao batalhão
brasileiro da Minustah, horas antes do terremoto, pudemos ver na
apresentação do coronel João Bernardes um extremo conhecimento do
funcionamento da sociedade haitiana. Infelizmente, a falta de ajuda parece
estar mais ligada às disputas internacionais pelo controle do futuro do
povo haitiano do que à emergência da situação.
Sim, os haitianos são vítimas, mas estão longe da passividade: pra cima e
pra baixo, entre as "dame sara" e o "chein jambe", vimos jovens escoteiros
removendo entulho, jovens pedido ajuda com alto-falantes, médicos
haitianos dando atendimento aos feridos nas ruas, freira haitianas
prestando os primeiros socorros quando possível. Paralelamente, o aparato
da Minustah, cerca de 5.500 militares de diferentes nacionalidades, ou
estava parado, ou mobilizado na atenção dos próprios quadros da ONU.
Os haitianos ajudam haitianos, a ONU ajuda a ONU.

Culpas internacionais
Duas reações foram recorrentes nos dias que se seguiram aos terremotos.
Uma, talvez a mais primária, era a de responsabilizar a natureza. A outra,
a de responsabilizar os próprios haitianos pelo caos que sucedeu ao
cataclismo. Afinal, foram incapazes de construir um Estado e, por isso,
são incapazes de reagir.
Ambas as reações são perversas. Não estamos só diante de um cataclismo
natural, mas também de uma catástrofe social. E o desmantelamento do
Estado haitiano não é responsabilidade exclusiva dos haitianos, muito pelo
contrário. País com pouca margem de manobra no contexto caribenho ao longo
das décadas de Guerra Fria, viu as grandes potências apoiarem uma ditadura
regressiva e particularmente violenta; concomitantemente, e especialmente
a partir do fim dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, o Haiti, como
tantos outros países, foi vítima de profissionais engravatados que
aplicavam a mesma receita em qualquer lugar: desregulamentação, estado
mínimo, livre comércio.
Foram as pressões do FMI e do Banco Mundial que obrigaram o Haiti a
desproteger a produção de arroz no início dos anos 1980. O Haiti era, até
então, autossuficiente em arroz.
Em pouco tempo não só se viu obrigado a importar este produto, como massas
de camponeses foram expulsas do campo para a capital do país,
aglomerando-se em habitações precárias, as mesmas que foram abaixo com o
terremoto. Tal como ocorreu com o arroz, o cimento também foi afetado.
Antes era produzido no país, e desde finais de 1980 foi importado dos EUA,
o que obrigou os haitianos a fazerem uso de tijolos pobremente produzidos
com areia. Tais tijolos são frágeis e acabam afetando a própria condição
das construções. E podemos seguir adiante para demonstrar que o
desmantelamento do Estado haitiano foi obra da "comunidade internacional".

Somente uma crítica sistemática ao próprio caráter da ajuda internacional
nas últimas décadas poderá ajudar o Haiti a sair de um atoleiro que não
foi construído apenas por ele. O que pudemos observar, além da passividade
da própria comunidade internacional, capaz de mobilizar mundos e fundos,
mas incapaz de conversar com as "dame sara" para imaginar uma saída
criativa para a distribuição da ajuda, foi um movimento mais do que
preocupante.
Milhares de soldados americanos ocupam, mais uma vez, o país, como se
houvesse uma situação de guerra civil, e o Brasil, já imerso há seis anos
em toda essa lama, entra no circo das potências que querem "ajudar" o
Haiti.
Sem termos presente o fato de que o Haiti é um país soberano, e que os
haitianos não são vítimas passivas de catástrofes naturais, dificilmente
sairemos do circulo de pobreza e miséria criada pela própria "comunidade
internacional", no qual o Brasil ocupa um trágico lugar central.

OMAR RIBEIRO THOMAZ, 44, é professor de antropologia da Unicamp; OTÁVIO
CALEGARI JORGE , 21, é estudante de ciências sociais na mesma
universidade.

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