domingo, 10 de janeiro de 2010

Literatura

Paulo Thadeu Gomes da Silva





Num primeiro momento pode parecer estranho que um verbete intitulado literatura possa constar de um dicionário de direitos humanos. A razão, supostamente, residiria em que não existe relação de pertinência entre o verbete e o título do livro. Essa constatação pode ser verdadeira se feita prima facie, contudo, se de fato pensada de maneira mais detida e mediante uma observação adequada a conclusão será pela existência de relação entre literatura e direitos humanos. O pressuposto é o de que todas as pessoas têm o direito humano e fundamental à literatura. A partir desse pressuposto descreve-se a relação existente entre eles. A relação que pode ser estabelecida também pode ser dividida em duas abordagens: a) uma abordagem geral e ampla; b) uma abordagem específica e restrita. Numa aproximação geral e ampla a literatura bem pode ser descrita como elemento integrante dos bens protegidos pela Constituição, em seus artigos 215 e 216, como manifestação oral e escrita da cultura dos povos que formam a sociedade brasileira. Bom é que se destaque que nessa acepção literatura nada tem a ver com a surrada distinção que indica a existência de uma hierarquia entre cultura erudita e cultura popular – a famosa dupla high brow / low brow –, de resto já existente em Eliot, pois que qualquer manifestação literária produzida nesse pano de fundo será considerada literatura como bem a ser protegido. A relação, então, existente entre literatura e direitos humanos, nesse quadro mais geral, amplo e, por assim dizer, mais político, deita raízes na idéia de que, uma vez protegidos esses bens, assegurada estará a auto-reprodução sócio-cultural das etnias que concorrem para a formação da sociedade multicultural brasileira. Numa abordagem específica e mais restrita a relação entre literatura e direitos humanos pode ser descrita como uma realidade que auxilia a compreensão da promoção e da defesa dos direitos fundamentais, agora já no campo mais jurídico que político. Essa função pode ser observada pela leitura de obras de cunho literário e que possuem potencial descritivo para influenciar a formação daquele que trabalha com o direito. Daí a chegar à conclusão de que é necessária a criação da cadeira direito e literatura vai um caminho muito curto. A lista de livros a serem lidos é extensa e dependerá de cada sociedade a seleção das obras, sem embargo de que a realidade mais comum impõe a leitura de livros que transcendam as fronteiras geográficas de cada país. O que se quer dizer é que, dependendo de cada país dar-se-á, como exceção à regra, ênfase em obras nacionais. Assim, direito e literatura na França, a par de contar com a leitura de obras não-francesas, priorizará um Racine; de igual efeito, nos Estados Unidos, na Espanha, na Alemanha, no Brasil, etc. Neste passo já se faz mais nítida a distinção direito humano na política e direito fundamental no jurídico. Na política esse direito humano pode ter sua promoção por meio da reivindicação e implementação de políticas públicas, educacionais ou não, que tenham por objeto o incremento do acesso ao direito à literatura, o que produziria o extraordinário efeito do alargamento da cosmovisão – Weltanschauung – das pessoas e, portanto, da sociedade, dando concretude ao que os alemães apregoam a respeito do cérebro pela frase grosser ist besser e combatendo o ditado inglês segundo o qual ignorance is bliss. A proteção desse direito humano, no político, pode ser feita pela impossibilidade de se modificar a norma constitucional que protege esse mesmo direito. No jurídico esse direito fundamental auxilia tanto a análise das decisões jurídicas como a construção doutrinária e jurisprudencial, ou seja, da interpretação. Aqui seria de se indagar: como pode um promotor de justiça acusar sem ter lido Os Miseráveis de Victor Hugo? Como pode um juiz julgar sem ter lido Billy Budd, de Herman Melville? Como pode um advogado defender sem ter lido o libelo J´accuse, de Zola? Como pode alguém ser acusado da prática de um crime sem ter lido Crime e Castigo, de Dostoievski? Como pode alguém compreender a aplicação de uma pena como retribuição sem ter lido O Mercador de Veneza, de Shakespeare? Uma discussão teórica valiosa se instaurou no direito norte-americano a respeito da comparação entre o formalismo legal e a escola literária representada pelo nome New Criticism. Ambos se equivaleriam em suas descrições e se antagonizariam com o denominado pensamento pós-moderno calcado no desconstrucionismo, pelo qual uma obra literária seria apenas um artefato, cuja interpretação teria que ser feita sem se levar em conta o contexto da biografia do autor e de outras determinantes referentes à composição da obra. Tome-se como exemplo mais significativo o texto da Constituição. Dworkin advoga meio-termo entre essas teorias e assevera que se escolhe entre duas interpretações sobre uma obra literária pela decisão que faz da obra uma obra melhor, mais coerente, mais agradável, e que o mesmo deveria ser feito quando da interpretação da Constituição, com a ressalva de que os critérios de coerência e integridade seriam jurídicos e não estéticos. Por exemplo, qual a interpretação da norma constitucional da igualdade de todos perante a lei seria a mais coerente expressão do princípio da igualdade? Esse debate pode apontar para a diferenciação funcional entre o sistema jurídico e o das artes, onde se incluiria a literatura, todavia, aqui não é a sede mais apropriada para mais essa descrição. Um autor brasileiro que escreveu especificamente sobre a literatura como direito humano foi Antonio Candido. Segundo ele há os bens compressíveis e os bens incompressíveis, sendo estes os que não podem ser negados a ninguém. Para esse mesmo autor, a literatura, sendo manifestação universal de todos os homens em todos os tempos, impede que qualquer pessoa não tenha contato, cotidianamente, com algum tipo de fabulação. Se essa premissa é adequada, e parece de fato ser, então a literatura, compreendida como toda e qualquer manifestação de verniz ficcional, dramático e poético, é também um direito humano, pois que toda pessoa tem a necessidade, e o direito, a ela, literatura. É ela que, ainda segundo as palavras do autor, sendo “fator indispensável de humanização, confirma o homem na sua humanidade” ou, conforme Vargas Llosa, “que a cultura, a literatura, as artes, a filosofia, desanimalizam os seres humanos, ampliam extraordinariamente seu horizonte vital, atiçam sua curiosidade, sua sensibilidade, sua fantasia, seus apetites, seus sonhos, os tornam mais porosos à amizade e ao diálogo, e melhor preparados para enfrentar a infelicidade”. Com base nessa idéia pode-se afirmar que a expressão direito humano transcende seu campo de aplicação das esferas do político e do jurídico para a esfera privada do indivíduo e dos grupos, cuja produção vai desembocar na identificação do patrimônio cultural da sociedade mundial, de sua vez, já protegido por Convenção Internacional. O risco existente para a formulação da idéia do direito humano/fundamental à literatura é a perda de eficácia do próprio conceito de direito humano/fundamental, pois que tudo ou quase poderia se configurar como direito dessa espécie. A eficácia, real, passaria a ser apenas simbólica. De fato, esse risco existe, contudo, a contingência parece ser da própria sociedade moderna, e nela os direitos humanos/fundamentais não seriam apenas universais, mas também universais direitos humanos/fundamentais universais. A decisão fica por conta da resposta que se possa dar à indagação: vale a pena correr o risco de se construir a idéia do direito à literatura como direito humano? O verbete aqui escrito indica a resposta positiva.


Paulo Thadeu Gomes da Silva, Doutor em Direito pela PUC/SP, Procurador Regional da República em São Paulo e Professor da UNIFMU.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos, Duas Cidades: SP, 2004, pp. 169-191.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Crime e Castigo, Editora 34: SP, 2001.

ELIOT, T. S.. Notas para uma definição de cultura, Perspectiva: SP, 1988.

HUGO, Victor. Os Miseráveis, Cosac & Naify: SP, 2002.

LEVINE, Lawrence. Highbrow/Lowbrow: The Emergence of Cultural Hierarchy in America, Harvard University Press: Cambridge: 1990.

LLOSA, Mario Vargas. Filosofia doméstica para tornar a vida mais compreensível e tolerável, O Estado de São Paulo, 11.06.2006, p. D8.

MELVILLE, Herman. Billy Budd, Cosac & Naify: SP, 2003.

POSNER, Richard A.. What Can Law Learn in the Schools of Literary Criticism. In: Law and Literature, Harvard University Press: Cambridge, 2002, pp. 211-254.





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